“Nesse perigoso cenário, aquele sujeito imbuído do desígnio de burlar o outro pode se municiar com uma dose extra de ousadia para promover vendas fraudulentas de veículos ou de animais de rebanho, para negociar bens móveis diversos a preço de banana, para transferir a propriedade de automóveis, para omitir transações complexas dos livros de sociedade empresária, para celebrar negócios de gaveta, inclusive mediante falsificação de assinaturas, bem como para realizar transferências bancárias de vulto, sem ter tanto receio de que seu consorte busque a justiça para anular a transação fraudulenta, em razão de os serviços judiciários estarem funcionando em regime de plantão extraordinário”.
Por Rafael Calmon
De todas as sensações causadas pela pandemia de Covid-19, uma em especial vem desconfortando as pessoas envolvidas em relações jurídico-familiares: a incerteza.
Não sabemos se continuaremos empregados, não sabemos se receberemos nossos salários, não sabemos se e quando poderemos honrar nossos compromissos financeiros, enfim. Aliás, não sabemos nem mesmo se estamos contaminados, ou se podemos manter contato físico com nossos entes queridos, especialmente se forem idosos ou crianças.
Está tudo realmente muito difícil e confuso.
No seio das famílias e de suas relações jurídicas isso se torna especialmente verdadeiro. Pais e filhos não estão convivendo como deveriam; dívidas alimentares não estão sendo honradas pontualmente e os meios executivos voltados a compelir o devedor a honra-las não estão surtindo efeitos; algumas notícias já dão conta, inclusive, de que o número de divórcios vem aumentando em alguns países, e, no que mais interessa por aqui, amplifica-se o receio de que um dos consortes, em meio a todo esse caos, aja maliciosamente para esconder, transferir ou criar, de maneira geral, mecanismos para fraudar a meação do outro ou se esquivar de suas obrigações familiares de conteúdo econômico.
Não se trata de terceiros fraudando a família. Trata-se, sim, de um membro interno fraudar a própria família, valendo-se ou não do auxílio de terceiros. É portanto, a fraude intrafamiliar que se visa combater.
Em destaque, dois fatores contrapostos contribuem para que essa incerteza se agrave: de um lado, a possibilidade de várias transações comerciais serem praticadas normalmente. De outro, o regime excepcional de funcionamento de órgãos públicos.
Nesse perigoso cenário, aquele sujeito imbuído do desígnio de burlar o outro pode se municiar com uma dose extra de ousadia para promover vendas fraudulentas de veículos ou de animais de rebanho, para negociar bens móveis diversos a preço de banana, para transferir a propriedade de automóveis, para omitir transações complexas dos livros de sociedade empresária, para celebrar negócios de gaveta, inclusive mediante falsificação de assinaturas, bem como para realizar transferências bancárias de vulto, sem ter tanto receio de que seu consorte busque a justiça para anular a transação fraudulenta, em razão de os serviços judiciários estarem funcionando em regime de plantão extraordinário.
É claro que essas negociações também poderiam ser feitas fora do período de exceção em que vivemos. Mas, convenhamos. Por mais que os escritórios de advocacia e as Varas Cíveis e de Família estejam trabalhando remotamente (regime de home office), seu funcionamento regular serviria como um fator muito maior de desestímulo à adoção de qualquer medida contrária ao direito.
É preciso, portanto, que as pessoas em geral, e os cônjuges e companheiros em especial, estejam bastante atentos.
No caso de suspeita ou de concretização de fraude, parece não haver outra saída, a não ser acionar a Justiça. Felizmente, a análise e eventual concessão de requerimentos liminares continua ocorrendo regularmente.
É certo que o promovente da medida cautelar ou antecipatória pode encontrar alguma dificuldade em coletar e apresentar os documentos necessários para a formação do convencimento do julgador, mas, em momentos como esse, em que obstáculos desse tipo são notórios, deve haver maior flexibilização na análise dos pressupostos necessários para sua concessão, com o objetivo de que seja muito mais valorizado o risco de periclitação do direito (periculum in mora) do que a probabilidade de sua existência (fumus boni iuris).
Seria como se o órgão decisor relativizasse a frágil demonstração deste último requisito (probabilidade do direito), diante da extrema urgência daquele (risco de ineficácia do provimento final), compensando-os em sua análise.
Longe de ser novidade em nossa prática judiciária, esse fenômeno é comumente verificável naquelas liminares concedidas para que candidatos eliminados em etapas anteriores continuem participando de certames, que empresas desabilitadas possam fazer parte da próxima fase de licitações, que alunos possam ser matriculados em instituições de ensino fundamental ou, ainda, que pacientes sejam internados em UTIs ou submetidos a procedimentos de emergência em hospitais da rede pública, por vezes até “furando” a fila de espera.
A comprovação do “fumus” acaba ficando relegada a um segundo momento, quando o “periculum” já houver sido contido.
Na literatura, Eduardo José da Fonseca Costa fala muito bem sobre isso, em seu livro “O direito vivo das liminares”.
Na prática das Varas de Família, diversas tutelas de urgência poderiam ser pleiteadas e, a depender do contexto, deferidas mesmo sem a comprovação muito robusta da probabilidade do direito, se o risco de ineficácia do provimento final for urgente-urgentíssimo, como costumeiramente vem sendo, em razão da pandemia.
Sem qualquer pretensão de esgotamento das medidas cabíveis, este curto e despretensioso texto almeja meramente oferecer alguma orientação a certas pessoas – verdadeiras vítimas, na verdade -, que possam estar vivenciando momentos agônicos não só em razão de estarem trancadas em casa por força da quarentena, mas também por causa do receio de seu consorte se aproveitar do momento para praticar uma série de fraudes patrimoniais.
Vejamos.
Se houver suspeitas de que fraudes estejam sendo engendradas no âmbito de sociedade empresária da qual apenas o fraudador seja sócio, é possível que a vítima pleiteie, por meio de ação autônoma, o bloqueio de quotas ou de ações da empresa, bem como que a realização de uma auditoria contábil.
Já se houver receio de que o possível fraudador esteja transferindo bens adquiridos mediante o esforço conjunto do casal, para a empresa da qual seja sócio, a suposta vítima pode se utilizar do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, previsto nos artigos 133 a 137 do CPC, para que, temporária, excepcional e casuisticamente, obtenha liminarmente a declaração de ineficácia das transações fraudulentas e a correspectiva proteção do bem comum, com seu retorno à mancomunhão.
O mais curioso é que esse tipo de demanda requer o ingresso da pessoa jurídica no polo passivo da lide, pois, em última análise, ela terá que se manifestar a respeito (CPC, art. 135), fazendo com que uma ação de família, em trâmite perante uma Vara de Família, contenha uma empresa como parte passiva.
É nesse sentido, aliás, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (AgInt no REsp 1.625.826/SP, DJe de 04.10.18).
Outra medida de contenção à fraude familiar é o “arrolamento constritivo” de bens, que possui o grande atrativo de proporcionar, também de forma liminar, não só a listagem dos bens que compõem o patrimônio comum, mas também a inserção de restrições à sua venda, mediante bloqueios em registros administrativos de veículos automotores aquáticos e terrestres ou trancamentos de matrículas de imóveis.
Diferentemente do que acontece no mero arrolamento conservativo, a ser mencionado logo adiante, seu procedimento é o mesmo da tutela cautelar, o que, de certo modo, até facilita a comprovação dos requisitos necessários para a obtenção da medida inaudita altera parte (CPC, arts. 306 a 310).
Uma notável vantagem em sua utilização é que o valor da causa deve corresponder apenas ao dos bens sobre os quais se pretenda inserir restrição à venda, sem que haja necessidade de se manter fina sintonia para com o da futura e eventual ação de partilha, até porque esta pode nem vir a ser proposta.
No STJ, existe inclusive precedentes nesse sentido, de que é exemplo o AgInt no REsp 1.567.495/RJ, DJe de 10.08.18.
Caso a pessoa interessada pretenda apenas relacionar os bens pertencentes ao casal, sem inserir restrições, outra medida de extremo relevo é o “arrolamento conservativo”, que, a rigor, também pode ser deferido liminarmente. Seu rito, contudo, não será o mesmo do arrolamento constritivo, mas sim aquele previsto para a produção antecipada de provas, pelos artigos 381 a 383 do CPC.
O enorme conveniente em sua utilização decorre do fato de o postulante obter algo como uma fotografia do patrimônio conjunto, que o “congela” naquele exato instante, tornando qualquer desfalque fraudulento facilmente compensável com outros bens que pertenceriam à meação do fraudador, em momento oportuno.
Outro grande benefício é o valor a ser atribuído à causa, que nem precisa corresponder ao dos bens arrolados, mas apenas ao de alçada, já que a medida representa um procedimento de jurisdição voluntário destinado a meramente listar, a obter documentação a respeito da situação patrimonial do casal, sem qualquer conteúdo restritivo. Por isso, também, sequer existe condenação em honorários em regra, não existe condenação ao pagamento das verbas de sucumbência (CPC, art. 88).
Aliás, a produção antecipada de provas é, não só nesse caso, mas sempre uma técnica superimportante para a contenção de fraudes. Isso porque, por meio dela podem ser colhidos depoimentos de testemunhas a respeito de fatos, exigida a apresentação de documentos, obtida a quebra de sigilo fiscal ou bancário etc.
Tudo isso, inclusive, de forma liminar.
Como o direito à obtenção da prova é uma situação jurídica autônoma e independente, não há necessidade de propositura de ação futura. O próprio Código deixa isso bem claro quando enuncia que a produção antecipada é admitida quando: I – haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação; II – a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito, ou; III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação (art. 381).
Além de aumentar significativamente as chances de pacificação do conflito subjacente, desestimulando, com isso, a propositura de ações contenciosas, a técnica pode auxiliar na elaboração da estratégia a ser eventualmente adotada na demanda vindoura e até servir de instrumento para tornar a litigância mais responsável de maneira geral, contribuindo para o aprimoramento do sistema de justiça.
Demandas voltadas à fixação liminar de aluguel pelo uso exclusivo da coisa comum também representam importante papel repressivo de fraudes, sobretudo quando o casal já se encontra separado de fato, mas ainda não tão disposto a promover a partilha definitiva dos bens. Isso porque, como se sabe, a separação de fato desempenha relevantíssimo papel na situação patrimonial da família, tornando tudo que foi adquirido antes de sua ocorrência comunicável e tudo que for eventualmente adquirido depois, incomunicável. Logo, se algum imóvel comum, por exemplo, continuar sendo ocupado por um só dos consortes depois da separação fática, o outro faz jus à percepção de quantia equivalente a 50% daquilo que teria direito a receber caso esse bem fosse alugado a terceiros. E, aguardar a partilha nem sempre pode ser uma boa opção, especialmente se houver suspeita de que o ocupante esteja se desfazendo de outros bens com o intuito de desfalcar compensações futuras.
Finalmente, pois este texto se encontra prestes a extrapolar seu propósito, a ação voltada à exigência de contas, prevista pelos artigos 550 a 553 do CPC, também representa importante mecanismo para a contenção de fraudes no âmbito intrafamiliar. Sua utilização é ampla e variada, pois a administração dos bens comuns deve ser feita, sempre, no interesse da família. Portanto, mesmo sem haver suspeitas de irregularidades ou má-fé, é direito de qualquer dos consortes exigir contas a respeito do gerenciamento dos bens adquiridos sob esforço conjunto, como, aliás, entende de forma aparentemente pacífica o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.470.906/SP, DJe de 15.10.15; AgRg no REsp 1.377.665/PR, DJe de 28.05.15), o que, para muito além dos bens físicos, gera repercussões sobre numerários depositados em contas bancárias particulares, aplicações financeiras, compras e vendas de ações e toda sorte de relações jurídico-patrimoniais realizadas com dinheiro proveniente do patrimônio comum.
Bom, basicamente, eram essas as reflexões sobre o ponto. Mas, como sempre faço questão de frisar, isso é só um ponto de vista.
Até a próxima!
Rafael Calmon
Mestre (UFES) e Doutor (UFRJ) em Direito Processual Civil. Juiz de Direito do TJES.
Crédito da imagem: Canva
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