TUDO MUDA E COM TODA RAZÃO

“É interessante refletir sobre os desdobramentos da “Revolução do WhatsApp”, pois, ela descortina a importante discussão sobre a existência ou não de limites civilizatórios em relação às questão multiculturais, na medida em que, justamente uma nação conhecida pelo seu respeito ao multiculturalismo, proporcionalmente com uma das maiores populações cristãs a conviver pacificamente com muçulmanos, em todo Oriente Médio, discute se tudo pode ser legitimado em nome do discurso de aceitação cultural”.

Por Adel El Tasse

Desde outubro de 2019 o Líbano tem vivenciado convulsões sociais originadas pela tentativa do governo de estabelecer taxação sobre as ligações pelo aplicativo WhatsApp, como forma de fazer frente à grave crise econômica enfrentada pelo País.

A crise econômica libanesa era inevitável para o pequeno país que tem grande parte de sua estrutura econômica centrada no turismo, um lindo país mediterrâneo, com população formada por diferentes culturas e religiões, conhecido como espaço de convívio e tolerância.

Embora seja uma ilha de paz e alegria, em meio às várias convulsões  vividas no Oriente Médio, evidentemente, o turismo no Líbano é atingido pelos conflitos regionais, somando, a isso, a importante postura adotada na crise dos refugiados Sírios, na qual, diferente de muitas nações que prometeram amparo mas acabaram por se omitir, recebeu cerca de 60% do seu quantitativo populacional, de pessoas que fugiam da guerra na nação irmã e vizinha.

Esses fatores, por certo, produziriam sensíveis dificuldades econômicas em qualquer local do planeta, basta, no campo teórico, imaginar se o Brasil, experimentasse redução drástica de suas arrecadações, somada ao recebimento de cerca de 110 milhões de refugiados, proporcionalmente, foi o que o Líbano corajosamente ousou fazer, em um momento no qual poucas fronteiras se abriam para muitos irmãos em humanidade que sofriam com a tragédia da guerra.

A crise econômica colocou nas ruas, irmanados todos os setores culturais e religiosos da sociedade libanesa, no que ficou conhecido com a “Revolução do WhatsApp”, porém, mesmo após o anúncio do governo da não taxação do aplicativo, a população seguiu nas ruas, como continuou, após a queda do gabinete do primeiro ministro, a mudança de toda estrutura ministerial e ainda tem se mobilizado, mesmo em tempos de COVID.

Isso ocorre porque a união da população nos pleitos econômicos acabou por dar origem a uma nova pauta, a da total laicização do Estado, com a superação da divisão das estruturas estatais entre as diferentes nomenclaturas religiosas, assim como, com a fixação definitiva da exclusividade da jurisdição estatal e regramento civil das relações sociais (há atualmente partilha, nas comunidades muçulmanas, da estatal com regramentos e níveis de jurisdição religiosa).

É interessante refletir sobre os desdobramentos da “Revolução do WhatsApp”, pois, ela descortina a importante discussão sobre a existência ou não de limites civilizatórios em relação às questão multiculturais, na medida em que, justamente uma nação conhecida pelo seu respeito ao multiculturalismo, proporcionalmente com uma das maiores populações cristãs a conviver pacificamente com muçulmanos, em todo Oriente Médio, discute se tudo pode ser legitimado em nome do discurso de aceitação cultural.

Transportada a temática para a reflexão planetária, a questão é se todas as práticas catalogadas como culturais de determinados povos ou religiões, podem ser legitimadas pelo Estado e pelas estruturas supranacionais.

Nessa toada, vale indagar se o Estado brasileiro deve legitimar ações de submissão da mulher, ao argumento de serem práticas próprias de determinadas estruturas religiosas aceitas no país, como, por exemplo, a de um emérito líder religioso nacional que recentemente deixou claro ter impedido sua filha de estudar na universidade, pois o estudo a comprometeria no objetivo maior de ser uma boa esposa, ou se práticas, como o uso de vestimentas excessivamente castradoras da liberdade da mulher, os casamentos assemelhados a sua venda, podem ser legitimadas, porque manifestações culturais/religiosas.

É pouco racional que o mesmo Estado a punir o feminicídio, sustente que em determinadas relações, nas quais as condições de submissão de gênero sejam patentes, devam ser suportadas em nome do traçado multicultural da sociedade.

A mesma reflexão vale para situações como a tolerância dos entes supranacionais, por exemplo, com práticas brutais contra seres não humanos realizadas, exemplificativamente, na China, pelo consumo generalizado de animais selvagens ou mesmo por crenças atreladas à sua medicina ou, até mesmo, à superstição popular.

Esses massacres dos seres não humanos também tem sido objeto de omissões internacionais, em nome de respeito cultural, ignorando por completo os avanços civilizatórios em torno da relação com o planeta.

 A questão ora colocada sequer remotamente deve ser confundida com o debate sobre a aceitação de ações de repulsa às pessoas que se encontram imersas em tais pautas culturais ou religiosas, pois, este debate seria negativo da própria civilidade que se quer afirmar.

O ponto é questionar se os Estados  devem legitimar e, portanto, omitir-se em relação aos comportamentos não adaptados ao nível civilizatório já atingido pela humanidade ou devem deslegitimá-los, atuando, sempre comprometidos com as balizas democrático-republicanas, na promoção, no plano interno, de políticas de aprofundamento da total laicização de suas estruturas e de desenvolvimento das pautas civilizatórias já atingidas, bem como, no plano internacional, junto aos organismos internacionais, inclusive de comércio, da necessidade de reafirmação dessas pautas, por mecanismos próprios do Direito Internacional.

A temática é particularmente singular quando o Brasil passa a alterar sua postura diplomática e se aliar com posicionamentos da nações mais conservadoras em torno da condição da mulher e atuar para considerar legítimo o genocídio dos palestinos, em nome da crença religiosa de parte da população brasileira, a qual acredita existir um povo eleito por Deus, que tudo pode sem limites, inclusive exterminar toda uma nação.

Em contraponto, a “Revolução do WhatsApp” pode ser lida como contunde manifestação dos tempos atuais, da necessidade de repensar  as estruturas de poder que atuam ou tudo permitem em nome da retórica da aceitação cultural, pois, demonstra a exaustão deste modelo, afinal um dia a dor dos que sofrem, pelo simples fato de nascerem imersos em determinada realidade cultural ou religiosa se torna brutal demais para não ser ouvida pelos demais.

Aisha, a esposa de Maomé, foi uma das mais contundentes vozes do islã originário na luta dos direitos das mulheres, defendendo que elas pudessem estudar, tivessem vida política, a ponto de, independente da já superada controvérsia religiosa entre sunitas e xiitas na questão, comandar um exército em Basra no ano 656. Ainda, defendeu que a mulheres pudessem participar da administração pública, enfim, viver em igualdade, algo absolutamente revolucionário para aqueles tempos.

Curioso pensar que nos anos 600 vozes já se levantavam, nos ambientes a elas mais hostis, para dizer que a fé, a cultura de um povo não podem impedir o avanço da civilização; observar nações multiculturais em sua essência, como o Líbano,  ficarem paralisadas para reconstruir as relações com base em estruturas laicas e níveis civilizatórios globais da humanidade e ver o Brasil pensar em se guiar conforme os limites culturais e religiosos, independe do retrocesso civilizatório que possa representar.

Belchior, em uma de suas mais conhecidas poesias/canções, diz: “Tenho ouvido muitos discos. Conversado com pessoas. Caminhado meu caminho. Papo, som, dentro da noite. E não tenho um amigo sequer. Que ‘inda acredite nisso não; Tudo muda! E com toda razão.”

O caminho é da evolução e esta da emancipação dos seres, independente do gênero ou espécie, portanto, o apego ao passado ao argumento de que é a tradição cultural pouco representa quando se constitui numa forma de opressão, de verdade, não tenho amigo sequer que ainda acredite nisso não.

Adel El Tasse

Advogado em Curitiba (PR). Procurador Federal. Professor de Direito Penal, em cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor no Curso CERS. Mestre e Doutor em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Coordenador Geral do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.

Crédito da imagem: Canva

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